Não podemos ignorar as produções da Netflix, especialmente no caso de “Donzela”. Pode-se ter uma reação inicial negativa, pensando que a história é rasa e apenas uma tentativa de ser politicamente correta, mas sua simbologia é muito interessante e merece ser explorada. É verdade que a presença de uma atriz de renome da casa, como Millie Bobby Brown, pode atrair muitos espectadores para o filme, desviando um pouco a atenção da história em si, especialmente quando há muitos elementos não ditos e relacionados a simbolismos.
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Portanto, mesmo que possamos inicialmente pensar que se trata de uma história típica de príncipe/herói com o gênero invertido, a questão vai muito além disso e aborda aspectos que as histórias antigas costumavam deixar ocultos, especialmente relacionados ao papel da mulher. E se alguém acha que dar protagonismo histórico às mulheres só traz problemas, “Donzela” mostra que há muito mais a ser percebido.
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A Donzela e o mito do herói
O “mito do herói” tem sido explorado em inúmeras histórias ao longo do tempo e hoje, no cinema, é bastante comum. Ele retrata o protagonista deixando sua vida anterior para trás, embarcando em uma jornada que o transforma em herói, eventualmente retornando à sua origem como vitorioso após enfrentar um monstro/vilão invencível ou lendário. Um dos exemplos mais emblemáticos é o mito de Perseu e a Medusa, mas atualmente é visto em várias produções, desde Star Wars até filmes da Marvel.
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Em “Donzela”, vemos que o desafio surge após uma história fabricada, impondo a Elodie (Millie Bobby Brown) um destino que ela está “fadada” a seguir. Desde o início do filme, há um jogo de manipulação, onde a história contada omite pontos cruciais para que Elodie os descubra posteriormente, como encontrar a “luz no fundo da caverna”. Além disso, o filme brinca com a mentira, que é revelada em um sonho, como é frequentemente mostrado na bíblia cristã. É importante prestar atenção na fonte da “luz”, já que ela possui poderes de cura e revelação da verdade por trás dos sonhos.
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Perseu compreende a Medusa
Embora a “Rainha Má” (Robin Wright) seja um personagem cativante, foi Shohreh Aghdashloo quem fez um papel excepcional dublando o dragão. Assim como a Medusa, o dragão é uma figura que altera o curso da história. Sua participação no desfecho é tão crucial quanto quando Perseu cortou a cabeça do monstro da ilha na caverna. O passado do dragão é tão terrível quanto o da Medusa grega, cujo crime foi ter sido violentada por Poseidon no templo de Atena, sendo punida pela deusa por “sua transgressão”, sendo então transformada em uma górgona.
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Dessa forma, nem o dragão é um monstro, nem Elodie é uma heroína. Ambos complementam a história, mas não são o que parecem ser. Elodie não deseja mais ser uma vítima e isso fica claro em seu discurso, mas a única criatura poderosa o suficiente para expor essa mentira é o próprio “monstro”. Assim, o filme se apresenta como uma crítica não tão sutil às tradições bárbaras arraigadas em nossa sociedade moderna. Ele demonstra que a glória dos “cidadãos de bem”, dos “heróis” históricos, é construída sobre uma visão distorcida da realidade. Aqueles que não gostaram do filme podem ter entendido a crítica, mas preferem rotulá-lo como apenas ruim e fraco, mantendo distância de temas que questionam suas verdades. Mais do que derrotar monstros, o filme trata de derrotar injustiças.
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