Tóquio – Há 20 anos, as vítimas da hanseníase, doença contagiosa que também é chamada de lepra, comemoravam uma importante decisão judicial no Japão.
Em maio de 2001, a lei preventiva que forçava a quarentena para os pacientes foi abolida, depois que a Corte de Kumamoto, no sul do Japão, considerou o ato como inconstitucional.
Segundo uma reportagem da emissora Fuji, a decisão foi um marco na recuperação dos direitos humanos de pessoas que passaram anos presas ou até a vida inteira em sanatórios e enfrentaram a rejeição e hostilização social.
Foi na década de 1940, nos Estados Unidos, que o tratamento com antibióticos para combater o bacilo de Hansen foi desenvolvido. Ficou provado que era possível curar a doença que afeta os nervos periféricos. Apesar do tratamento eficaz, o Japão aprovou, dez anos depois, a lei de isolamento dos infectados. Os pacientes foram obrigados a viver nos sanatórios.
Os contaminados que entravam no sanatório saíam vários anos depois e alguns nunca deixavam o local. Mesmo com o tratamento, os ex-pacientes não sabiam que estavam curados e viviam sob o medo de voltar a ter sintomas, passar para os filhos e ter que se isolar da sociedade de novo.
Sachiko Kinjo, de 79 anos, é co-autora de um processo de direitos humanos em Okinawa e autora do livro “Tive Hanseníase e Sou Feliz” (Hansen-byo Datta Watashi wa Shiawase). Na obra, compartilha as experiências pessoais e tenta conscientizar a sociedade.
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Rejeição e preconceito
Sachiko vive na cidade de Uruma, na província de Okinawa. Aos oito anos de idade, foi diagnosticada com hanseníase. A doença fez sua vida famíliar e social mudar da noite para o dia.
Em Okinawa, haviam dois centros de isolamento para os pacientes. Os doentes eram levados para o Sanatório Okinawa Airakuen ou o Sanatório Miyako Nansei-en, na ilha de Miyako, ao sul da província.
O protocolo de forçar o isolamento dos infectados se manteve até 1996. Sachiko passou a juventude no Sanatório de Airakuen por causa da doença.
“Primeiro fui trancada em um quarto na casa dos meus familiares. Dormia em quarto separado e meus amigos não se aproximavam de mim. De repente os amigos não podiam mais passar pela minha rua e saíam correndo quando me viam”, relembra.
A infância difícil se agravou como consequência do preconceito em volta da doença.
“Logo as crianças que costumavam ser meus amigos começaram a jogar pedras em mim e a cuspir na minha direção. Minha vida se tornou um inferno”, relata.
Sachiko foi internada no Sanatório Airakuen e anos depois, estudou no Araden Kyoshitsu em Okayama, uma escola de nível médio (koukou) destinada aos jovens estudantes com hanseníase, internados em 13 sanatórios no Japão.
Ela voltou para Okinawa depois da formatura, se casou e teve três filhos. Sachiko não sabia que estava curada e viveu sob o medo da doença voltar e contaminar as crianças. Por isto, não quis amamentar os filhos.
“Já adulta, passei a esconder que tive a doença. Pensava que as crianças não podiam descobrir de jeito nenhum e que precisava protegê-las. Elas nem sabiam que tipo de doença era. Todos os meus esforços foram para proteger meus filhos”, explicou.
Na década de 1980, Sachiko teve um problema de pele por causa do uso de alguns cremes e acreditou que estava novamente doente, já que a hanseníase provoca manchas cutâneas. Ela acabou retornando ao sanatório e depois que saiu. Graças a nova experiência e com a abolição da lei, decidiu iniciar as atividades de conscientização.
Atividade voluntária
Jin’yu Taira é um japonês idoso, que também teve hanseníase e viveu no Sanatório de Airakuen. Depois da decisão da Corte de Kumamoto em 2001, ele se encorajou a iniciar uma atividade voluntária.
Taira também publicou um livro sobre o assunto e passou a compartilhar as experiências em eventos.
A província de Okinawa tem mais de 100 ex-pacientes, na maioria idosos. É possível contar nos dedos o número de pessoas que se afirmam como “recuperados” e falam abertamente sobre as experiências de quando estavam doentes e a vida no sanatório.
“São poucas as pessoas que falam e qual a razão disso? Eles passaram anos escondendo seus rostos e sem falar sobre o passado. Esta dor é fruto desta lei de quarentena forçada. Essas pessoas carregam o sofrimento até hoje”, diz Taira.
Mesmo que os direitos humanos dos ex-pacientes sejam recuperados, as vítimas da doença e do preconceito carregam suas feridas para sempre.
Em 2015, foi montado um centro para a troca de experiências graças aos esforços de Masaharu Kinjo, que também sofreu com a hanseníase e foi autor do processo de direitos humanos em Okinawa. O objetivo foi garantir um espaço para que ex-pacientes expliquem sobre a doença e conscientizem as novas gerações.
Masaharu se dedicou por mais de 20 anos na luta contra o preconceito e a discriminação. Em março deste ano, faleceu por causa de um problema de saúde.
“Quero que a história da hanseníase não seja esquecida. Ainda estamos no processo e vou seguir e continuar o legado de Masaharu. O projeto do centro também é um legado dele que vamos fazer funcionar”, diz Sachiko.
Curiosidades sobre a hanseníase
A hanseníase é uma das doenças mais antigas do mundo, com pelo menos 4 mil anos de história. A doença é provocada pela bactéria Mycobacterium Leprae, que também é conhecida como bacilo de Hansen em homenagem ao cientista Armauer Hansen, que identificou a bactéria em 1873.
O tempo de encubação é longo, podendo levar mais de cinco anos para o paciente apresentar os sintomas. A hanseníase se manifesta através de manchas na pele, perda da sensibilidade e dormência. Nos casos mais graves, provoca incapacidades físicas, perda de membros e pode deixar sequelas.
O tratamento dura de 6 a 12 meses a depender do caso. A boa notícia é que a hanseníase tem cura e os pacientes podem ter uma vida completamente normal. A transmissão ocorre por gotículas de saliva e as vias aéreas superiores. Tocar no infectado, por exemplo, não é uma forma de contágio.
Segundo informações da Sociedade Brasileira de Dermatologia, a doença ainda apresenta muitos casos nos países subdesenvolvidos e com alta densidade populacional. O Brasil é o segundo país com o maior número de casos no mundo, com mais de 20 mil novos registros anuais. O país com mais infectados é a Índia e os dados passam de 100 mil por ano.
Acredita-se que 90% das pessoas possuem resistência para a bactéria. O poder de contágio é elevado, mas são poucas as pessoas que chegam a ficar doentes. Embora não haja uma vacina para a hanseníase, a vacina da BCG, dada aos bebês para prevenir a tuberculose, garante um pouco de resistência ao bacilo de Hansen, pois se tratam de bactérias semelhantes.