Tóquio – Muitos estrangeiros se encontram em situação de vulnerabilidade social no Japão. Empregos instáveis, dificuldade em fazer as leis trabalhistas serem cumpridas e moradias que dependem do empregador.
Uma reportagem do Portal Friday Digital abordou um tema espinhoso e pouco conhecido até mesmo entre os japoneses: o crescimento no número de estrangeiros desabrigados, morando nas ruas do Japão.
De acordo com a reportagem, são comuns os casos de estrangeiros que enfrentam essas condições e acabam passando um ou dois dias no banco de um parque até conseguir uma ajuda dentro de sua própria comunidade.
Há outros que passam o dia abrigados nos populares restaurantes de família que oferecem comida barata ou vivem pelos net cafés. Mas os casos de estrangeiros que vão mesmo morar nas ruas, montando abrigos de papelão nas esquinas de centros comerciais ou barracas nos gramados nas margens de rios, são mais difíceis de ver por aí.
Os voluntários de entidades que oferecem apoio social aos cidadão não-japoneses contam que nos últimos 2-3 anos, os estrangeiros que se tornaram moradores de rua estão chamando mais atenção nas grandes cidades japonesas.
Pessoas de países asiáticos, do oriente médio ou da América do Sul, o que pode incluir brasileiros, estão dormindo nas ruas. A organização sem fins lucrativos (NPO) Tsukuroi Tokyo Fund, que tem prestado apoio para a população de baixa renda no Japão, também atende estrangeiros em situação difícil.
Um dos funcionários que se dedica a entender os estrangeiros residentes é Yuma Osawa. Ele contou ao Portal Friday o que tem percebido com sua experiência.
“Estamos oferecendo um apoio focado nos refugiados no momento. Depois do coronavírus, muitos estrangeiros perderam suas moradias e vieram pedir ajuda. Eles relatam também problemas de saúde e dificuldades no dia a dia. É comum que recebam alguma ajuda das pessoas mais próximas, mas se perdem este apoio, não conseguem mais manter suas vidas e vão parar na rua”, explicou.
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Exploração no trabalho
Parte da pobreza que afeta os estrangeiros no Japão está relacionada com as péssimas condições de trabalho, muitas vezes fora da lei, mas sem a devida fiscalização.
Há 2,67 milhões de estrangeiros vivendo no Japão, muitos de países asiáticos ou sul americanos como o Brasil e nos último anos, tem aumentado o número de cidadãos de países africanos e do Oriente Médio.
Os estrangeiros que vem de países pouco desenvolvidos estão em busca de estabilidade financeira e melhores condições de vida. Mas muitos deles, principalmente os asiáticos, acabam submetidos a um estilo de trabalho desvantajoso, com longas jornadas nas fábricas e pagamentos que ficam entre 100 mil ienes, um valor muito abaixo do necessário para se sustentar no país.
A reportagem contou que, por causa disso, muitos desses estrangeiros buscam complementar a renda com serviços de limpeza ou trabalhando em casas noturnas e assim conseguem sustentar suas famílias e enviar dinheiro para os familiares no país de origem.
Um trabalhador vietnamita no Japão deu o seguinte relato para o Friday:
“O pessoal não tem nenhum dinheiro guardado, então quando se machucam ou ficam doentes, não conseguem mais pagar as contas. Eles não sabem japonês, não conseguem pedir ajuda. Todos os dias se preocupam se não vão ficar doentes ou sofrer algum acidente que colocaria tudo a perder”.
Se não for possível trabalhar por razões como doença, suas vidas apertadas acabam inviáveis pela falta de dinheiro. Não é mais possível pagar aluguel, são expulsos de suas moradias e vão parar nas ruas. Os trabalhadores estrangeiros estão em risco maior de acabar na ruas do que os japoneses.
Entretanto, sempre foi raro ver estrangeiros nas ruas do Japão e há um motivo para isso: a rede de proteção que é criada dentro das próprias comunidades.
Os estrangeiros se unem com seus conterrâneos que vivem na mesma região. Fazem amizade com outras pessoas que falam o mesmo idioma e se apoiam. Os tailandeses buscam apoio com outros tailandeses. Os paquistaneses se apoiam entre si.
“Eles se unem em seus grupos, trocam informações, apresentam trabalhos uns aos outros, ajudam a cuidar das crianças, emprestam coisas e dividem”, disse Yuma.
Um cingalês que trabalha com importação de carros usados deu o seguinte relato:
“Antigamente, os cingaleses vieram juntar dinheiro no Japão mas eram todos muito pobres. Eles se conheciam no trabalho e formavam seus grupos, se ajudavam. Alguns casaram com japoneses, outros abriram seus próprios negócios e prosperaram. A comunidade cresceu, quem estava com problemas era ajudado pelos outros, os empreendedores contratavam quem precisava de ajuda em suas empresas. Se alguém era expulso do apartamento, outra pessoa abrigava em casa. Hoje há muitas comunidades de cingaleses em Tóquio, Osaka e outras regiões”.
Os trabalhadores estrangeiros estão em uma posição de desvantagem no Japão e não podem contar muito com o sistema. As comunidades e o apoio que prestam uns aos outros é o que consegue evitar que mais pessoas acabem morando nas ruas, mas essas comunidades estão enfraquecendo.
O vietnamita salvo pela comunidade
Don é um vietnamita na faixa de 50 anos de idade. Ele vivia no dormitório de uma empresa de construção civil e trabalhava no local. Mas um dia, Don teve um problema nos quadris e precisou faltar o serviço por um tempo. Por conta disso, teve um grande corte em seu pagamento mensal.
Ele estava abrigado no dormitório da empresa e tinha uma dívida acumulada por causa de um acidente no passado. Don não conseguiu mais pagar a dívida, estava com grandes problemas financeiros e acabou furtando ¥5 mil de um colega de trabalho. No dia seguinte foi descoberto, demitido e expulso do dormitório.
Ele passou a dormir no banco de um parque e pediu ajuda no Facebook por causa de sua situação. A publicação fez com que outro vietnamita, que trabalhava em uma fábrica nas redondezas, entrasse em contato. Era uma pessoa que ele já tinha encontrado em alguns fins de semana, em reuniões entre vietnamitas.
“Ele disse que se eu tivesse com problemas eu podia dormir no dormitório dele. Na verdade não é permitido que ninguém que não seja funcionário da firma vá para o dormitório, mas ele disse que a gente podia dar um jeito nisso”, contou.
Don foi para o apartamento do amigo e conseguiu convencer os responsáveis a deixá-lo ficar. Ele foi ajudado por um grupo de conterrâneos até que estivesse curado dos quadris e depois passou a trabalhar na mesma fábrica.
O caso da tailandesa que parou nas ruas
Jamu é uma tailandesa que depois de chegar no Japão, passou a trabalhar atendendo os clientes em uma casa noturna. Depois dos 40 anos de idade, casou-se pela segunda vez, desta vez com um homem japonês que era cliente constante da casa.
Assim que se casaram, o homem se revelou uma pessoa violenta. Jamu passou a sofrer violência doméstica e parou de trabalhar na casa noturna. Ela ouviu o marido dizer que “não precisava de uma mulher que só dava despesa” e ela foi expulsa de casa.
Jamu foi parar na rua e pediu socorro para outra tailandesa que administrava uma casa de massagem na mesma cidade. A região abriga uma pequena comunidade de trabalhadores tailandeses, que trocam informações entre si e se ajudam.
A dona da casa de massagem deixou Jamu dormir no local depois do horário de fechamento. Ela também conversou com um tailandês que era cozinheiro de um restaurante na cidade e Jamu passou a receber as sobras do restaurante. Graças a isso, a mulher conseguiu passar um ano dormindo e se alimentando gratuitamente, até se reestabelecer.
Jamu conseguiu trabalho na própria casa de massagem e quando superou o casamento que não deu certo e a violência que passou, foi trabalhar como camareira. Depois de um ano, conseguiu sua independência financeira novamente.
É por causa dessa rede de apoio que muitos estrangeiros estão conseguindo evitar o triste destino de dormir nas ruas e passar fome, sem emprego e nenhuma condição financeira para ter um mínimo de dignidade.
No entanto, depois da pandemia, as redes de apoio estão enfraquecendo e isto tem forçado mais pessoas a enfrentar a realidade difícil das ruas.
A situação da pandemia afetou principalmente aqueles que estavam em uma posição social mais enfraquecida. Entre as comunidades estrangeiras, aqueles que estavam em maior sofrimento foram perdendo suas moradias um a um.
“A situação balançou as redes de proteção dos estrangeiros. E quanto aos refugiados, a Imigração passou a oferecer as liberdades provisórias e soltou muitas pessoas detidas nos centros de forma repentina. Só que a Imigração não permite que essas pessoas trabalhem, eles perdem a capacidade de se sustentar no Japão e foram jogados nas ruas nesta situação e ainda em plena pandemia. Muitos acabaram em uma situação que não podiam nem se alimentar”, contou Yuma.
Por causa disso, houve casos também de estrangeiros que acabaram morrendo. As entidades voluntárias de apoio se tornaram as principais fontes de suporte para essas pessoas, mas nem sempre o contato chega a tempo ou é possível atender todo mundo que está passando por dificuldades no Japão.
E se não é viável deixar o país, resta contar com a sorte de conseguir mudar a própria realidade em uma situação de rua, sem oferta de emprego ou moradia.